Artigo de Alexandre
Schwartsman | Quem propuser uma Previdência de capitalização terá de
explicar como bancar a transição.
Um físico, um
químico e um economista estão numa ilha deserta, com latas de comida salvas do
naufrágio, mas sem o abridor. Os dois primeiros sugerem métodos para abrir as
latas baseados em suas especialidades, ambos, porém, impraticáveis. Cabe ao
economista anunciar que tem a solução para o problema: "Supondo que temos
um abridor de latas...".
A piada é antiga, mas surpreendentemente atual no nosso contexto, em
particular no que diz respeito à reforma da Previdência. Economistas, tanto os
ligados a Ciro Gomes como os a Jair Bolsonaro, defendem a transição do atual
regime previdenciário, de repartição —em que os trabalhadores hoje ativos
transferem recursos aos aposentados — para capitalização —em que cada
pessoa recebe como aposentada aquilo que poupou ao longo de sua vida.
A vantagem no caso seria a virtual impossibilidade de déficits, desde
que o sistema seja bem desenhado: como cada um recebe apenas o que poupou, não
há, por definição, insuficiência de recursos que obrigue o governo a cobrir a
diferença entre a arrecadação e o gasto (na verdade, como também se propõe que
haja um regime de repartição para os de menor renda, há a possibilidade de
algum déficit, mas bem menor que o atual).
Como é que ninguém pensou nisso antes?
A verdade é que muita gente pensou; apenas, ao contrário desses
economistas, não supôs que possuísse um abridor de latas. O cerne da questão é
simples. Se pudéssemos começar um sistema previdenciário do zero, provavelmente
montaríamos um regime de capitalização; o problema é que não podemos.
Considerando apenas o INSS, há cerca de 30 milhões de aposentados e
pensionistas, que receberam nos últimos 12 meses algo como R$ 570 bilhões
(aproximadamente R$ 1.460/mês). Esse valor é (parcialmente) bancado por 52,5
milhões de contribuintes, que recolheram R$ 381 bilhões no mesmo período,
considerando tanto a parcela dos segurados como das empresas que os empregam
(mesmo encargos que são "pagos" pelas empresas acabam recaindo em
larga medida sobre os trabalhadores na forma de salários mais baixos). O resultado
é um déficit de R$ 189 bilhões, coberto pelo Tesouro Nacional.
É verdade que a atual geração de aposentados desaparecerá (perdão, mas
faz parte da condição humana), porém, enquanto isso não acontecesse, o Tesouro
Nacional teria de bancar a transição. Seu custo exato depende de muitas
variáveis (até mesmo a redução do teto das aposentadorias, tema do qual os
candidatos fogem mais rápido do que o diabo da cruz), mas a discussão é
acadêmica, pois o Tesouro (mesmo descontado o resultado do INSS) não é
superavitário o suficiente para cobrir a perda de receita.
É possível usar truques para mascarar as alternativas, mas não há como
fugir delas: redução no valor das aposentadorias remanescentes no regime de
repartição, aumento de tributos e elevação da dívida, ou, mais provavelmente,
uma combinação dos três.
A conclusão é inescapável: quem propuser uma reforma previdenciária
nesse sentido tem também de deixar muito claro como pretende bancar o custo da
transição. Se não o fizer, pode estar certo de que possui um abridor de latas
imaginário...
FOLHA DE SÃO PAULO