CDC não se aplica a fundos de pensão
O Código de Defesa do Consumidor
foi criado a partir da publicação da Lei 8.078, em 11 de setembro de 1990.
A sua elaboração estava prevista
nas Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, que alçou a
proteção do consumidor à categoria de direito fundamental, merecendo tutela do
Estado. Não há dúvidas que sua edição representou uma importante conquista para
a sociedade brasileira e um divisor de águas nas relações comerciais.
Além da sua importância na
regulação dos negócios jurídicos havidos entre consumidores e fornecedores,
pode-se dizer que o advento do CDC foi também um importante instrumento para a
efetivação de direitos individuais e coletivos em um período cujo país ainda
experimentava a abertura política. A efetiva proteção do consumidor inspirou os
brasileiros a exercitar outros direitos inerentes à plena vivência da
cidadania, auxiliando a concretizar, assim, o então incipiente regime
democrático.
O Poder Judiciário, após um período
de maciça aplicação de seus dispositivos às relações no âmbito do direito
privado e da ampliação dos conceitos de fornecedor e consumidor, sempre
privilegiando estes àqueles – como bem determina a referida lei em seu art. 47
–, chegou a um momento de amadurecimento e ponderação, passando a observar
também as disposições de outros sistemas legais à medida de suas
especificidades.
De fato, apesar da indiscutível
importância do CDC, essa lei não pode ser utilizada indistintamente, pois há
determinadas relações que não se submetem às normas ali dispostas.
Uma interessante discussão sobre a
questão diz respeito à possibilidade de aplicação do CDC às entidades de
previdência privada.
A edição das Leis Complementares
108 e 109 representou um novo marco regulatório para o sistema previdenciário
complementar, até então regulado pela Lei 6.435/77, buscando uma melhor
regulação e o fomento da criação dessas entidades.
De acordo com a LC 109, a
previdência privada, de caráter complementar e autônomo em relação ao regime
geral de previdência social, é operada por entidades de previdência
complementar que têm por objetivo instituir e administrar planos de benefícios
de caráter previdenciário. A modelagem e o desenho dos planos de benefícios,
cujos regulamentos se consubstanciam em contratos de natureza
civil-previdenciária, estão baseados em complexas premissas atuariais e devem
atender a padrões mínimos fixados pelo órgão regulador e fiscalizador,
assegurando a transparência, solvência, liquidez e equilíbrio
econômico-financeiro e atuarial.
Essas entidades são dividas entre
as chamadas entidades abertas e fechadas de previdência complementar, estas
também denominadas Fundos de Pensão. A aplicação do CDC às entidades abertas é
perfeitamente cabível, mas o mesmo não pode ser dito para as entidades fechadas
de previdência complementar em razão de suas peculiaridades.
Em que pesem as claras distinções
contidas no moderno marco regulatório, os participantes e os beneficiários de
planos administrados por entidades fechadas de previdência complementar
passaram a buscar no Judiciário a alteração dos regulamentos a partir da
aplicação dos princípios protetivos do CDC. Atualmente, são milhares os
processos judiciais em curso, o que muitas vezes serve ao enfraquecimento do
próprio sistema.
O acolhimento dessas pretensões
pelo Judiciário foi tamanho que, em 2005, o Superior Tribunal de Justiça editou
a súmula 321, para estabelecer que as disposições do CDC se aplicavam as
entidades de previdência complementar, sem fazer qualquer distinção entre as
abertas e as fechadas, igualando-as como instituições financeiras.
Esse posicionamento gera um grande
risco para a longevidade do sistema, pois desvirtua os contratos e ameaça o
delicado equilíbrio econômico-financeiro e atuarial dos planos, já que estende
a alguns o pagamento de parcelas não previstas no regulamento e, portanto, sem
a correspondente fonte de custeio. A manutenção desse quadro poderia causar, a
médio e longo prazo, o déficit dos planos, a ser suportado pelos próprios
participantes, beneficiários e patrocinadores. Assim, os ganhos imprevistos de
alguns são pagos por todos, o que desvirtua o princípio de cooperação que deve
reger essas relações.
Durante mais de dez anos, as EFPC
buscaram, sem sucesso, afastar as disposições do CDC para que restassem
integralmente aplicadas as disposições contratuais, a legislação específica e,
subsidiariamente, a legislação civil e previdenciária.
Muitos são os fundamentos que
demonstram a inadequação da aplicação do CDC a esses contratos.
A lei estabeleceu que as entidades
fechadas de previdência complementar são criadas por empresas patrocinadoras ou
por instituidores com o objetivo de oferecer, exclusivamente aos seus
empregados ou associados, a opção de contratarem um plano de benefícios que
lhes permita complementar os rendimentos a serem pagos futuramente pela
previdência social, mantendo o padrão de vida que desfrutavam enquanto ativos.
Nessas entidades, além das contribuições vertidas pelos participantes, a
empresa também contribui financeiramente para a formação das reservas. Nas EFPC
criadas por instituidores, o custeio para o pagamento dos benefícios futuros é
obtido apenas a partir da contribuição dos associados.
Nas entidades abertas de
previdência complementar, porém, não há exclusividade: os serviços de
previdência complementar são oferecidos livremente ao mercado de consumo e
podem ser contratados por quaisquer pessoas, inexistindo a figura do
patrocinador.
Uma importante distinção diz
respeito à gestão dessas entidades. Nas entidades fechadas, a administração é
feita a partir de composição paritária, o que não ocorre nas abertas. Conforme
os artigos 35 e 39, a participação dos contratantes na gestão das entidades
fechadas é obrigatória, o mesmo não ocorrendo nas abertas, cuja gestão é feita
exclusivamente pela instituição. Por outro lado, a fiscalização das entidades é
feita por distintos órgãos do Poder Executivo. Enquanto as abertas são
supervisionadas e reguladas pela SUSEP, autarquia vinculada ao Ministério da
Fazenda, as fechadas estão submetidas à PREVIC, órgão ligado ao Ministério da
Previdência Social (artigo 74), restando clara a distinção das atividades e das
finalidades de umas e outras.
Além disso, segundo os artigos 31 e
32 da LC, as EFPC têm como objeto a administração e execução de planos de
benefícios oferecidos exclusivamente aos empregados dos patrocinadores e aos
associados dos instituidores. Ainda segundo a LC, as EFPC devem se organizar
sob a forma de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos. Essas
entidades, portanto, não têm patrimônio próprio e eventual superávit é
integralmente vertido para o próprio plano, isto é, para os participantes,
beneficiários e patrocinadores, aos quais cabem a gestão dos fundos, conforme
estabelece o artigo 35. Logo, essas entidades exercem atividade econômica, já
que administram recursos, mas a proibição de oferta de planos de benefício ao
mercado de consumo e a expressa vedação legal a persecução de lucros deixam
claro a inexistência de finalidade econômica.
As entidades abertas, por sua vez,
somente poderão se constituir sob a forma de sociedades anônimas e com o
objetivo de instituir e operar planos de benefícios acessíveis ao público em
geral, sendo possível que aufiram lucros. Tratam-se de instituições financeiras
e seguradoras que obtém permissão de atuação nesse nicho. Diante desse quadro,
facilmente identificam-se as características de uma relação de consumo, em que
há a figura de um fornecedor e a de um consumidor, destinatário final da
prestação de serviço.
Nas EFPC, porém, tal distinção
torna-se impossível em razão da natureza mutualista. Todos unem esforços
pessoais para a formação das reservas e se solidarizam para suportar os riscos
do negócio. Em resumo, se um ganha, ganham todos; se um perde, perdem todos.
Logo, nem mesmo com muito esforço
interpretativo pode-se distinguir quem são os fornecedores e os consumidores de
uma EFPC, pois inexiste o antagonismo representado por interesses diversos.
Essa impossibilidade foi o fato
propulsor da paulatina mudança jurisprudencial ocorrida nas Turmas de Direito
Privado do STJ, que é o Tribunal responsável por uniformizar a interpretação
das leis federais. Em meados de 2013, quando do julgamento de recursos
envolvendo as EFPC, as 3ª e 4ª Turmas, com composições renovadas, passaram a privilegiar
em seus julgados o conteúdo normativo mais específico, afastando a aplicação do
CDC por não vislumbrarem nesses negócios jurídicos os elementos que
caracterizam as relações de consumo.
Finalmente, em 26 de agosto de
2015, a Segunda Seção do STJ, julgando o Recurso Especial Repetitivo
1.536.786/MG, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, por unanimidade,
colocou fim a controvérsia e cravou que as disposições contidas no CDC não se
aplicam as EFPC, sendo cabíveis apenas às entidades abertas.
Naquela ocasião, o STJ traçou as
amplas distinções entre as entidades abertas e fechadas, concluindo que em
razão de suas características, não se aplicam às EFPC as disposições gerais
contidas no CDC, devendo ser privilegiadas as disposições regulamentares e as
previstas na LC 109. Interessante destacar que os julgadores aprofundaram
o tema e afirmaram que as regras do código consumerista, mesmo em situações que
não estejam regulamentadas pela legislação especial, não se aplicam às relações
envolvendo participantes, beneficiários e EFPC. Na conclusão do julgamento
destacaram, com muita propriedade, que a relação havida entre esse público é
multipolar, ou associativa, pois o enfoque está na cooperação para atingir o
fim comum, observada a boa-fé objetiva.
A Comissão de Jurisprudência do STJ
decidirá agora se haverá a edição de nova súmula ou se apenas será alterado o
conteúdo da já existente, para que reste expresso que as disposições do CDC
somente se aplicam às entidades abertas de previdência complementar
Danielle Guleimo / Consultor Jurídico