Da Vinci não criou tecnologias práticas, mas apontou para o futuro


Entre o carnavalesco e o visionário, gênio florentino criava aparatos que pareciam ser voltados para o palco.

 

Os projetos visionários de Leonardo da Vinci (1452-1519) levam muita gente a enxergá-lo como o primeiro idealizador de uma longa lista de invenções modernas, que inclui os tanques de guerra, os trajes de mergulho e até os helicópteros. O curioso, porém, é que o gênio italiano estava mais para carnavalesco ou cenógrafo do que para Steve Jobs, bolando engenhocas mais espetaculares e sonhadoras do que práticas.

Se houvesse um equivalente do Procon na Itália renascentista, da Vinci poderia muito bem ter sido processado por propaganda enganosa. Numa carta que escreveu aos 30 anos de idade a um possível empregador, Ludovico Sforza, futuro duque de Milão, Leonardo era pura autoconfiança:

“Tenho métodos para destruir qualquer fortaleza, mesmo se suas fundações forem de rocha sólida (...)

Quando a luta é no mar, tenho muitos tipos de máquinas eficientes para o ataque e a defesa (...) Farei carruagens encouraçadas inexpugnáveis, capazes de penetrar as fileiras do inimigo com sua artilharia.”   

Quantos aparatos citados nessa carta já tinham sido testados, ou pelo menos construídos, quando da Vinci escreveu para Sforza? Nenhum.

Mesmo assim, Leonardo, que tinha nascido no território dominado pela cidade-Estado de Florença (na época, a Itália era uma coleção de pequenos territórios rivais, e não um país unificado), conseguiu o emprego que desejava na corte de Milão. 

Embora ambicionasse obter fama como engenheiro militar, uma das principais funções do polímata florentino nesses anos foi a criação de engenhocas capazes de trazer brilho e esplendor a cerimônias e apresentações teatrais feitas para os nobres milaneses.

Tal como superproduções teatrais ou circenses de hoje podem dar aos espectadores a ilusão de que o astro do espetáculo está voando pelos ares, alguns aparatos retratados nos cadernos de anotações de Leonardo que chegaram até nós parecem ter sido criados para o palco, e não para a guerra ou outros fins práticos. É o caso da “máquina voadora” equipada com uma hélice, que pode ser vista nesta página, diz um dos biógrafos do artista, o americano Walter Isaacson.

“Havia brinquedos da época que usavam mecanismos similares”, escreve Isaacson em seu livro “Leonardo da Vinci”.

Conta-se que o artista chegou até a criar um “leão-robô” rudimentar, que abria seu peito, revelando uma flor-de-lis, emblema dos reis da França (a quem ele passou a servir depois que Milão caiu diante dos exércitos franceses). Essas exibições parecem ter casado bem com a personalidade de Leonardo, louvado como um grande anfitrião, de conversa sagaz e amável e apaixonado por roupas luxuosas.

A paixão pelo espetáculo, entretanto, explica só parte dos inventos rascunhados por da Vinci. Outro elemento muito importante era o desejo de entender a lógica e a matemática da natureza, um anseio que o acompanhou pela vida.

Leonardo nunca conseguiu aprender álgebra direito e sofria para entender até formas mais complexas de aritmética, mas tinha uma capacidade enorme de compreender fenômenos “no olho”, usando uma forma intuitiva de geometria. Isso ajuda a explicar por que duas de suas obsessões, o voo das aves e o movimento das águas, foram objeto de “invenções” que nunca saíram do papel e são quase experimentos mentais —as máquinas voadoras e o traje de mergulho.

Ao mesmo tempo, o pacifista Leonardo, que se abstinha de comer carne e era um crítico feroz de crueldades contra animais, tinha uma relação ambivalente com o poder e a glória militar. Em sua busca por patronos, colocou-se à serviço do chefe militar César Bórgia (1475-1507), filho bastardo do papa Alexandre 6º.

Foi ao lado do chefe militar César Bórgia que Leonardo da Vinci exerceu seus projetos de engenharia militar, idealizando uma ponte desmontável com a qual as forças de seu mecenas conseguiram atravessar um rio e até um odômetro —no aparelho, engrenagens se encaixavam conforme a roda dele girava, depositando pedrinhas num recipiente a intervalos regulares, o que ajudava a estimar a distância percorrida.

Em parte, o que impediu que a genialidade de Leonardo se transformasse em tecnologias reais foi a falta de uma fonte de energia potente o suficiente para turbinar aparelhos como tanques e máquinas voadoras — a Itália do Renascimento, afinal, contava só com a força dos músculos humanos e os ventos e águas que moviam moinhos.

Outro elemento importante foi a sua tendência à procrastinação e ao perfeccionismo. E, em parte, seu pacifismo.

“Por que não descrevo meu método para permanecer debaixo d’água?

Por causa da natureza maligna dos homens, que poderiam usá-lo para matanças no leito do mar”, escreveu em seus cadernos. Mal sabia ele.

Reinaldo José Lopes – repórter de ciência jornal FSP

Fonte: coluna Ciências

Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br