A realidade virtual na imprensa


Os jornais de quarta-feira (22/1) formam uma colcha de retalhos cuja estampa embaralha a visão do observador. O conjunto de manchetes e outros assuntos em destaque revela que o Brasil tem 55% mais presos do que a média mundial, que a polícia fechou uma dezena de carvoarias no interior de São Paulo, onde havia trabalho infantil e escravidão, que a empresa francesa Alstom pagava 15% de propina para autoridades do governo paulista, que a presidente da República desenvolve estratégia para contornar manifestações violentas durante a Copa do Mundo.

Também há curiosidades, como o fato de os jornais tratarem como aumento do desemprego a desaceleração do ritmo de novos empregos, a volta do Fundo Monetário Internacional à lista das fontes credenciadas pela imprensa, e uma correção na reportagem otimista, publicada na véspera, sobre violência policial em São Paulo: na terça-feira (21), os jornais anunciaram que as mortes causadas por policiais militares haviam caído 32% em 2013. Agora, a informação é corrigida: na verdade, policiais de folga mataram 50% mais no ano passado. A diferença, portanto, é apenas no vestuário – a polícia paulista continua mantendo sua opção preferencial pela execução sumária, apenas mata mais quando está de folga.

A vida midiatizada tem esse aspecto instigante: de tantas novidades, a notícia passa a ser uma coisa banal, cujo valor específico se perde em meio a tantos estímulos. Trata-se da realidade virtual criada pela mídia.

Como escreveu certa vez o filósofo francês Roger-Pol Droit, a novidade é apenas mais uma ficção, uma escolha aleatória de quem organiza aquilo que é oferecido ao público pelo sistema da imprensa. O filósofo já experimentou ficar um longo período imune a notícias, e depois constatou que nada havia acontecido que merecesse suas preocupações.

No entanto, pode-se dizer também exatamente o contrário: se o indivíduo der muita atenção às novidades, acabará se tornando refém do sistema da mídia e perderá progressivamente sua autonomia. O exemplo típico é o do cidadão que evita sair de casa porque acredita que as ruas estão tomadas por criminosos, ou, mais comumente, daquelas famílias que só frequentam shopping centers porque acham que são lugares seguros, com homens fortes e armados que mantêm o perigo lá fora.

O país do futebol

A ficção que invade o noticiário chegou a níveis tão elevados que não se pode mais separar os fatos reais da mera intenção, da opinião e dos sentimentos mais corriqueiros.

Vejamos, por exemplo, a reportagem que faz a manchete do Estado de S. Paulo na edição de quarta-feira (22). Diz o seguinte: “Dilma e PT agem para evitar ações violentas na Copa”. O texto que se segue informa que o governo federal trabalha com a convicção de que haverá ondas de protestos contra a realização da Copa do Mundo, justamente nos dias em que as seleções de futebol estiverem se enfrentando em estádios brasileiros.

A estratégia de prevenção das autoridades federais inclui reuniões com representantes de “movimentos populares”, mas a preocupação central é com o descontrole das polícias estaduais.

Ora, o leitor crítico, aquele chato que não engole a notícia sem questionar, se pergunta: o que são “movimentos populares”? No caso em questão, as autoridades estão dialogando com a representante de uma entidade chamada Comitê Popular da Copa. O jornal não se preocupou em confirmar as credenciais da interlocutora, cujos poderes incluem supostamente o de interromper o maior evento esportivo do planeta.

Declarações de representantes das muitas coletividades que promoveram passeatas por todo o Brasil em junho do ano passado têm incluído palavras de ordem contra a realização da Copa do Mundo. De lá para cá, o tema foi integrado a questões como a falta de moradia, desapropriações e ações de despejo ligadas ou não a obras de infraestrutura da Copa.

O noticiário induz o leitor a acreditar que um avassalador movimento de massas irá bloquear os estádios e as avenidas, impedindo a realização dos jogos.

A análise dos perfis de certos representantes de “movimentos populares” conduz a grupos que militam simultaneamente em múltiplas frentes, quase todos associados a dois ou três partidos políticos. A imprensa hegemônica, que nunca deu espaço para tais expressões políticas, de repente vê nelas um elevado grau de representatividade.

Há muitas razões para criticar os altos gastos e a desorganização do plano para a Copa do Mundo. Mas o senso comum diz que não há “movimento popular” capaz de impedir um jogo de futebol no Brasil.

Luciano Martins Costa - Jornalista e escritor, autor, é produtor e apresentador do programa Observatório da Imprensa.

Fonte: site Observatório da Imprensa

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