Poliglotas funcionam no automático e têm vantagens cognitivas


Ator Bill Murray em "Encontros e Desencontros" ("Lost in Translation", no original), de Sofia Coppola

Eu não precisava dos fones de ouvido, mas fiquei com pena do tradutor simultâneo. A fala de Susan Blakemore, numa palestra sobre quais partes do cérebro primeiro mostram sinais da doença de Alzheimer, era incrivelmente articulada, mas tinha a velocidade de uma narração de corrida no jóquei. Resolvi, de brincadeira, fazer tradução simultânea eu mesma. Era mais fácil do que parecia –desde que eu não prestasse mais atenção no conteúdo da palestra, apenas na sequência das palavras. Tradução simultânea só funciona no modo automático.

Compreender outra língua é fácil para quem é verdadeiramente bilíngue, pois as redes que representam as duas línguas no cérebro são compartilhadas, como se houvesse um único dicionário mental, e não dois separados: as ideias são uma só. Para a tradução, o esforço deve estar na hora de decidir em qual idioma produzir os movimentos da boca.

Um estudo feito por pesquisadores na Universidade de Genebra, na Suíça, terra de bilíngues e poliglotas por natureza, comparou a atividade no cérebro de alunos trilíngues do mestrado em interpretação de conferências enquanto eles ouviam frases; repetiam-nas simultaneamente, na mesma língua, sem traduzi-las; ou faziam tradução simultânea.

O grupo mostrou que, de fato, até certo ponto, a tradução simultânea funciona como a repetição imediata do que se ouve: todas as estruturas cerebrais que cuidam da escuta e do processamento lexical e sintático envolvidas na repetição simultânea também participam da tradução simultânea. Mas a tradução simultânea vai além: recruta a área motora suplementar, que seleciona e gera comandos motores complexos; o córtex da ínsula anterior, envolvido em autoconsciência; e também o cingulado anterior, que monitora conflitos e antecipa erros.

Além do córtex, o núcleo caudado, abaixo dele, também é recrutado, e provavelmente permite a tradução automática: o córtex mantém o foco, mas conta com os circuitos altamente treinados do caudado para ajudar a área motora suplementar a selecionar o que sai pela boca.

Não é à toa que dois tradutores geralmente se revezam durante cada palestra. Esse negócio de falar várias línguas dá trabalho –e justamente por isso faz bem ao cérebro: pessoas bilíngues tem uma série de vantagens cognitivas, incluindo melhor controle das suas ações, e até menos chance de desenvolver alzheimer.

Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)

Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com

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