O que é mesmo a língua brasileira?
Longe de ser um
instrumento de opressão, a revisão de textos é um trabalho de refinamento e de
busca da precisão
Nos últimos tempos, voltou ao debate a ideia de
que o português do Brasil deve ser tratado como uma língua distinta daquela
falada em Portugal.
Os defensores dessa proposta, no entanto, não
parecem assumir uma perspectiva nacionalista, como se poderia imaginar à
primeira vista. Não é essa a questão, nem de longe.
O que parece alimentar a
tese da língua brasileira hoje, no século 21, é a valorização da oralidade,
naturalmente suscetível a grande variação tanto regional como diastrática.
Enfatizam-se as diferenças colhidas no registro distenso da língua a pretexto
de valorizar a diversidade, agora mais relevante que a unidade. A diversidade
seria "real" e a unidade seria "fictícia".
Com base nesse olhar, atento mais às mudanças
que às permanências, propõe-se uma atualização do cânone da língua padrão, que
estaria ultrapassado.
Assim, as obras literárias consagradas deixariam de ser o
modelo de correção gramatical, papel que passaria a ser desempenhado pelo texto
jornalístico e pela produção acadêmica.
Em tese, a mudança de corpus não
deveria fazer grande diferença, pois tanto jornalistas como graduandos,
mestrandos, doutorandos e professores universitários fazem uso da norma padrão
sistematizada nas gramáticas. Ou não?
Sim e, às vezes, não. Grandes jornais costumam ter manuais de
orientação editorial, que, baseados nas gramáticas, servem para tirar dúvidas
de quem escreve contra o relógio no dia a dia.
Há muito tempo, porém,
dispensaram a figura do revisor (ou do "copidesque"), atividade que
já foi exercida – em tempos ainda mais distantes – por gente do quilate de
Graciliano Ramos, José Saramago e Machado de Assis, entre outros que conhecemos pelo brilho de suas
obras literárias.
O fato é que, sem o revisor, a tendência é haver
menos rigor no uso da norma padrão. Há, sem dúvida, jornalistas que se revelam
exímios escritores (não faltam exemplos), mas outros ainda estão ganhando
experiência.
Claro está que todos, indistintamente, participariam desse novo
cânone. Na prática, o que eram "erros gramaticais", às vezes mero
fruto de lapso, ganharia status de modelo de correção.
Não é demasiado lembrar
que a atividade do jornalista não se resume a escrever, o que, de saída, o
distingue de escritores propriamente ditos.
Estes últimos é que se ocupam de
fato de burilar a linguagem, explorando a plenitude de seus recursos. Sempre
foi assim.
Os textos produzidos por estudantes
universitários, por vezes, refletem falhas da formação escolar anterior – e
quem o diz são os próprios professores que leem os trabalhos deles.
Alguns
orientadores sugerem a alunos que submetam seus trabalhos à revisão
profissional, mas muitos outros não o fazem. Além disso, frequentemente esses
trabalhos são revisados por outros estudantes, em busca de um "bico"
para arredondar o orçamento. O resultado é novamente a irregularidade.
O novo cânone seria, então, muito abrangente.
Naturalmente, para ser "novo", teria de assegurar a pureza do corpus,
liberto da interferência de algum tacanho revisor de texto.
Não por acaso, os
revisores vêm sendo tachados de "elitistas" e até de
"reacionários". Seriam, no plano específico de sua atividade,
defensores da "unidade fictícia" em detrimento da "diversidade
real" e, no plano geral, defensores de uma tradição que, por muitos
motivos, deveria ser questionada.
Em outras palavras, a posição
"progressista" no debate é a que introduz como modelo de correção
gramatical os textos jornalísticos e universitários em "estado puro",
que, afinal, sem a interferência fantasmagórica do revisor, seriam a expressão
"real" da língua da camada culta da população.
Com esse modelo, por
certo, não nos livramos do "elitismo", mas, talvez, apenas dos
revisores.
Não vamos negar que haja revisores de mão
pesada, pouco sensíveis ao estilo de algum escritor, mas é falso tomá-los como
padrão da profissão.
O revisor não é um mero "caçador de erros",
muito menos alguém que decore meia dúzia de regras gramaticais e se gabe de
suposta sapiência para diminuir o valor alheio.
Existe gente séria fazendo
trabalho sério nessa área, gente que estuda, pesquisa, consulta, confere, mas
atua longe dos holofotes, como o simpático personagem da "História do
Cerco de Lisboa", de José Saramago. (E não é que o ganhador do Nobel de Língua Portuguesa, que inventou um novo modo de usar as
vírgulas, alçou o revisor a protagonista do romance?)
Ao defender, na sua atividade, o conhecimento
consolidado nas gramáticas, o revisor usa como modelo não o seu estilo pessoal
(como parece fazer quem advoga em causa própria), mas um patrimônio coletivo
constituído pela tradição cultural.
Demonizar esse profissional, sob o duvidoso
pretexto de "democratizar" a língua, é perda de tempo.
Ao que tudo
indica, esse "novo cânone", se sair do discurso fácil de ser
"curtido" nas redes sociais, vai enfrentar grandes dificuldades
técnicas, se não a total impossibilidade de concretização. Com objetivos pouco
claros, pode ser apenas uma batalha fadada a ser inglória.
Thaís Nicoleti – jornalista do blog de
Língua Portuguesa