Obrigada pelo transtorno!
- Algo em nós resiste a aceitar que os pais estão envelhecendo
- Cuidar dos pais não é favor, não é pagamento de dívida
"Desculpe o transtorno que a gente está te
dando, filha."
Ouvi isso dos meus pais, pela primeira vez, há
poucos dias. Fiquei processando. "Desculpe"? "Transtorno"?
Não. Isso tem outro nome: privilégio.
Cuidar dos pais não é favor. Não é pagamento de
dívida, não é gratidão —muito menos um fardo. Pode ser cansativo, mas é um dos
raros lugares da vida em que a completude se deixa tocar.
Estar ao lado dos pais enquanto eles envelhecem é
descobrir novas formas de vida, aprender novas formas de manifestar um amor que
pede reverência por sua magnitude.
Quem nos parecia imbatível começa a se
curvar ao tempo. A firmeza do pai, a energia da mãe, tudo aquilo que parecia
inesgotável, agora corre em outra velocidade, em outra frequência.
Menos vigor,
talvez. Mas não menos vida.
Existe algo que pulsa numa intensidade própria,
como se eles tivessem reservado pequenas doses de força destinadas a jorrar
nessa fase.
A calma, a paciência, a sabedoria, o humor sem freios. É um poder
silencioso, mais potente do que qualquer ato heroico do passado.
Gabriel García Márquez descreveu essa
força em "Memórias de Minhas Putas Tristes" (2004):
"A idade não é a que a gente tem, mas a que a gente sente. (...) Pela
primeira vez em minha vida me entreguei à plenitude do que significa estar
vivo.
A velhice, em vez de me trazer o cansaço, me oferecia uma segunda
oportunidade de vida inesperada e luminosa..."
Ainda assim, o privilégio não dissolve a vertigem
que desperta. Algum domínio da emoção resiste a aceitar alguma fragilidade ou
limitação dos nossos pais.
Um desejo irracional e infantil de que sejam
eternos, que continuem sendo os guardiões do impossível, mesmo quando pedem
ajuda para tarefas triviais.
Se deparar com limitações de quem nos carregou na
vida e nos apresentou os caminhos para nossas escolhas, cutuca o nosso maior
temor secreto que temos medo até de pensar, agora desafiado pela natureza impiedosa.
Pais são sagrados. Fizeram acontecer o milagre da
vida e, ao mesmo tempo, estiveram presentes nas horas corriqueiras. Talvez seja
justamente nessa conjunção do divino e do cotidiano que está a dificuldade em
aceitarmos que eles também se transformam.
Fazer parte da geração sanduíche, que cuida dos
pais e dos filhos, exige malabarismos. Esse duplo movimento, ainda que nos
estique e nos demande, toca a essência, o núcleo simples e incontornável da
existência.
É unir o fio da continuidade, estar no centro da linha do tempo, no
presente, sustentando o futuro que cresce e honrando o passado que se renova em
outra cadência.
Chamam de "inversão de papéis" ou de
"emancipação forçada". Para mim, nada disso serve. Os papéis nunca
vão se inverter, mesmo que agora sejamos nós, os filhos, que os acompanhamos ao
médico e damos bronca quando eles fumam escondidos.
Não é isso que conta. A
figura dos pais nunca abandona a criança que levamos dentro de nós. Meus pais
continuam a nos chamar de "as crianças". E é uma delícia ainda caber
nesse lugar.
A luta contra o tempo é uma batalha inútil. Só
quando formos capazes de aceitar verdadeiramente o seu curso natural é que nos
libertaremos da ilusão de resgatar o impossível. É nessa aceitação (se é que
ela é possível) que encontraremos uma nova forma de eternidade.
Pais dão trabalho? Dão. Amar dá um trabalho danado.
Obrigada pelo transtorno!
BECKY
S. KORICH - advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e
Amor'