Por aniversários mais conscientes


Por aniversários mais conscientes

Dou graças aos santos da biologia por ter meu pai vivinho da silva, esperto e travesso.

Acho que eu só fui a um enterro na minha vida, o de uma amiga querida dos meus pais. 

Até entendo a parte de demonstrar amor e apoio a quem fica, mas minha cabeça esquisita pensa que depois do fato consumado é tarde demais para demonstrar apreço, respeito e reverência por quem se foi —a tal altura, que diferença faz para quem acabou de morrer?

(Sim, sim, eu concordo que é arrepiante e talvez reconfortante descobrir que quem a gente perdeu era muito mais querido, e por muito mais pessoas, do que a gente suspeitava. Mas continue lendo e você vai entender aonde eu quero chegar.)

Lembrei de um filme em que o personagem de Michael Caine morreria em breve, então ele pede para sua esposa organizar um "living wake": um "funeral em vida" (não, não lembro do nome do filme). 

A cerimônia e a celebração no filme foram lindíssimas e tocantes para os convidados –uma vez passada a estranheza de celebrar a vida de alguém nas últimas, o que é um tabu para a humanidade moderna esquisita, que parece que acha que se a gente não falar na morte ela não acontece. 

Fiquei pensando que preferiria muito que funerais fossem assim, ainda em vida, para dar tempo de celebrar a pessoa com ela ainda presente.

Depois pensei que todo mundo deveria ter direito a um dia especial assim, para ter sua vida celebrada por pessoas queridas, gratas pelo fato de existirmos no mundo.

E depois me toquei de que esse dia já existe, e a gente é que o desvirtuou. É o aniversário.

Não se trata de um dia "especial", em que você chuta o balde e come e bebe o que quer, comemora "mais um ano de vida" e acrescenta um número à sua idade. 

Os votos habituais de "parabéns pelo seu aniversário" ainda me deixam um tanto constrangida, porque não entendo a razão de celebrar eu ter ficado mais velha, então acho esquisito eu mesma dizer "parabéns pelo seu aniversário" aos outros. 

"Feliz aniversário" faz mais sentido, mas é só um pouco melhor.

Ainda mais agora que entendi que podia, e devia, ser muito diferente. 

O dia do nosso aniversário é aquele dia em que todo mundo já tem marcado no calendário para lembrar de ser grato por a gente existir nas suas vidas, e pra gente lembrar de ser grato por estar vivo e ter essas pessoas bacanas e queridas ao redor, que param as suas vidas para vir nos celebrar —mesmo que elas não se toquem do sentido profundo que um aniversário poderia ter. 

O sentimento de gratidão, já diz a neurociência, é felicidade pura.

Um aniversário deveria ser um dia reservado a dar "não parabéns" ao aniversariante, mas graças a todos os deuses em que a gente acredita ou não por aquela pessoa existir e continuar existindo.

Então, ano passado, nos meus 50 anos, dei festa. 

Fiz feijoada para quem estava na cidade (pois aqui nos EUA meu aniversário costuma ser feriado), convidei todos a tirar aquela roupa especial do armário, dancei descalça na minha sala com quem mais ousou me acompanhar. Comemorei com meus amigos o fato de eu estar viva.

E hoje, dou graças aos santos da biologia por eu continuar tendo meu pai vivinho da silva, esperto e travesso como sempre. 

Não digo Parabéns, e sim Obrigada, meu pai amado, por continuar se cuidando. Todo meu amor e gratidão a você.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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