Lucros divulgados e a real situação de sustentabilidade das Operadoras de Saúde


Lucros divulgados e a real situação de sustentabilidade das Operadoras de Saúde

Os números divulgados ao longo de 2024 indicam que a saúde suplementar brasileira atravessa um momento de aparente recuperação. 

Um lucro líquido agregado de R$ 11,1 bilhões, sobre um faturamento de R$ 350 bilhões (margem de 3,16 %), pareceria, à primeira vista, sinalizar a retomada de uma trajetória de sustentabilidade. 

E, de fato, é com essa perspectiva que diversas entidades setoriais, informes de mercado e comunicações oficiais vêm celebrando o desempenho recente das operadoras.

Como atuária, não posso deixar de fazer um questionamento: o que exatamente está sendo contabilizado — e o que está sendo deixado de fora — desses resultados tão animadores? 

A leitura mais aprofundada das demonstrações financeiras do setor revela que nem tudo que reluz nos relatórios trimestrais representa ouro contábil de verdade.

O discurso predominante atribui os bons resultados a melhorias na gestão de custos assistenciais, maior eficiência operacional e reequilíbrio das carteiras após a pandemia. 

Todavia, uma análise um pouco mais criteriosa, sob a ótica das boas práticas atuariais e contábeis, demonstra uma face menos explorada dessa narrativa: o subdimensionamento sistemático de provisões técnicas obrigatórias, especialmente da PEONA e da PEONA SUS.

Essas provisões — exigidas pela regulação vigente — têm como função precípua reconhecer passivos relacionados a eventos incorridos, mas ainda não avisados, e garantir o devido ressarcimento ao SUS. 

Não é raro encontrarmos operadoras que adotam o mínimo exigido ou aplicam metodologias cujos parâmetros atuariais acabam subestimando as verdadeiras obrigações futuras. 

Em casos mais críticos, é possível identificar até mesmo fatores de PEONA SUS próximos de zero, o que contrasta com a realidade observada em termos de utilização do sistema público.

O resultado dessa prática é perverso: lucros inflados, sinistralidades subavaliadas e uma percepção de rentabilidade que não se sustentam quando ajustados às exigências atuariais mais complexas. 

Mais preocupante ainda é o fato de que esse tipo de subregistro não apenas compromete a transparência, mas também distorce a percepção de solvência do setor, mascarando riscos relevantes com os quais as operadoras inevitavelmente terão de lidar no futuro.

Não bastasse o subprovisionamento, observa-se também a relevância crescente das receitas financeiras na composição dos resultados. 

Em 2024, o saldo operacional das operadoras médico-hospitalares foi de apenas R$ 4 bilhões — valor que sugere que a maior parte dos lucros reportados não se originou da operação assistencial em si, mas do retorno sobre investimentos. 

É claro que o bom desempenho de aplicações financeiras não deve ser desprezado, mas, quando a rentabilidade depende mais do comportamento dos mercados do que de eficiência operacional, há razões para acender o sinal de alerta.

O retorno sobre o patrimônio líquido (ROE), por sua vez, manteve-se acima de 15 % entre as grandes operadoras — patamar que supera com folga a média dos setores não financeiros. 

Novamente, aqui cabe a pergunta: essa rentabilidade reflete competência assistencial ou deriva da compressão artificial de despesas técnicas e da alavancagem financeira? Na minha visão, é mais do segundo que do primeiro.

E há mais. O IDSS, índice utilizado pela ANS para aferir a qualidade das operadoras, apresentou média de 0,7805 em 2023, com mais de 70 % das empresas pontuando acima de 0,6. 

Ainda que o índice represente um esforço válido de avaliação multidimensional, é necessário reconhecer que a dimensão econômico-financeira — que tem peso considerável no cálculo final — pode estar sendo inflada por dados contaminados pela contabilização parcial de passivos. 

Ou seja, há uma desconexão entre a performance retratada no índice e a realidade de longo prazo.

Apesar dos resultados financeiros positivos em 2024, o endividamento de longo prazo das operadoras de saúde suplementar permanece uma preocupação significativa. 

De acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o setor apresentou um aumento de dois pontos percentuais no endividamento bruto geral, equivalente a R$ 1,31 bilhão, no primeiro trimestre de 2024. 

Esse crescimento do passivo de longo prazo pode comprometer a capacidade dessas operadoras de realizar investimentos estratégicos e manter reservas técnicas adequadas, especialmente em um cenário econômico volátil.

Além disso, a dependência crescente de capital de terceiros para financiar operações e investimentos expõe as operadoras a riscos financeiros adicionais. 

Com a taxa Selic mantendo-se em níveis elevados, o custo da dívida aumenta, pressionando as margens operacionais e reduzindo a flexibilidade financeira das empresas. 

Essa situação é particularmente preocupante para operadoras que já enfrentam desafios na constituição de provisões técnicas adequadas, como a PEONA e a PEONA SUS. 

A combinação de alto endividamento e subprovisionamento técnico pode resultar em uma fragilidade estrutural que compromete a solvência e a capacidade de cumprir obrigações futuras com beneficiários e prestadores de serviços.

Nos primeiros meses de 2025, a tendência de queda na sinistralidade continua e atinge 79,2 % no primeiro trimestre, segundo dados da ANS. 

No entanto, permanece a dúvida: essa redução decorre de melhorias reais na gestão assistencial ou estamos, mais uma vez, diante de reconhecimento parcial de despesas? 

Na minha leitura, a comunicação do setor carece de maior equilíbrio. A insistência em destacar resultados consolidados e indicadores financeiros positivos — sem contextualizar o nível de provisões ou o grau de alavancagem — reforça uma narrativa parcial, que mais promove confiança ilusória do que solidez efetiva. 

O risco aqui não é apenas reputacional: é sistêmico.

A sustentabilidade verdadeira do setor de saúde suplementar não se alcança com provisões mínimas e lucros de curto prazo, mas com resiliência técnica, capital próprio compatível com os riscos assumidos e total transparência nos demonstrativos financeiros. 

Sem isso, qualquer narrativa de recuperação será, no fundo, uma ilusão contábil — e os custos desse autoengano, infelizmente, tendem a ser pagos pelo consumidor.

ANDREA MENTE – atuária e sócia da Assistants     

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