Por que amamos um ditador?
- Conceitos de comunidade e bem comum dos ameríndios contrastavam com
a hierarquia e desigualdade europeias
- Para os povos originários das Américas, o poder deveria ser
rotativo e baseado no exemplo, não em privilégios
No
livro "O Despertar de Tudo", de David Graeber e David Wengrow, vemos
como os indígenas ficaram perplexos com a forma como os europeus recém-chegados
às Américas lidavam com a ideia de autoridade.
A submissão a líderes
religiosos, a militares, a chefes de Estado e a uma realeza notoriamente
incapaz, injusta ou obscena era incompreensível para os nativos. Eles prezavam
sua liberdade acima de tudo.
Para
os ameríndios, nenhum ser humano deveria ter poder sobre outro, nem sobre a
natureza. Isso tornava a todos virtualmente iguais.
A liderança nessas
sociedades se dá pela qualidade da retórica, que deve estar associada ao
exemplo. Discurso sem lastro não funciona.
O poder é rotativo e visa o bem
comum, não o privilégio pessoal. Pode ser destituído por diversas razões, que
vão da incompetência à sazonalidade.
Não
era inteligível para nativos das Américas o fato de que ter posses fazia de
alguém melhor que os outros. Tampouco seria aceitável deixar alguém de sua
comunidade passar fome ou ficar desabrigado.
Afinal, se você deixar seu parente
passando fome ou sem assistência, qual a garantia de que não acabará da mesma
forma? Nesses povos, a ideia é de que o parentesco não se reduz à família
nuclear, com laços de sangue e bens, ela inclui toda a comunidade de origem.
A
partir da pesquisa de Graeber e Wengrow, vemos como o choque cultural entre
europeus e indígenas levou a uma crítica social que teve grande influência
sobre o Iluminismo.
Os termos "liberdade, igualdade e fraternidade"
estão mais em acordo com o modo de vida nativo e com a interlocução que se deu
com ilustres lideranças indígenas da época. É claro que esse choque também teve
como resposta o recrudescimento da visão europeia.
A
psicanálise teve seu papel aí. Para Freud, o pensamento indígena revelaria a
infância do mundo, baseada em mitos e crenças inocentes, que a razão viria
iluminar.
O inventor da psicanálise apostava no mantra tão conhecido entre nós
de que o desenvolvimento vai do sujeito dito primitivo ao civilizado.
Subestimar a inteligência, a capacidade de julgamento moral e a sabedoria do
outro é prática conhecida do colonizador.
Foi aplicada a negros, indígenas e
também às mulheres ao longo da história. E continua sendo aplicada 500 anos
depois.
O
que ficou evidente em nossa sociedade é que nem toda ciência do mundo foi capaz
de torná-la mais justa e decente, porque não era essa a visão de mundo.
A
avidez por salvadores da pátria tenta dar conta de uma sexualidade reprimida,
desviada para discursos inflamados e bélicos, que usam a palavra liberdade onde
a subserviência impera.
Graeber
e Wengrow estão interessados em saber sobre a questão da liberdade mais do que
da igualdade, pois entendem que a primeira serve de condição para a segunda.
Havendo liberdade, ou seja, ninguém sendo explorado pelos demais, a igualdade
entre nós é possível.
Amamos
nossos ditadores quando tememos nossa própria liberdade, o risco de nos
responsabilizar pelo nosso desejo e de encarar o desejo do outro também.
Assumimos que o desejo humano é sempre destrutivo e nefasto e esquecemos que
essa é só a versão colonizadora da história. Podemos criar outras.
VERA
IACONELLI
- diretora do Instituto Gerar de Psicanálise,
autora de “Manifesto Antimaternalista” e “Felicidade Ordinária