O horror e seu avesso
O ser humano é capaz de provocar situações de intenso horror, mas há
algo em nós que pode também criar o seu avesso.
Em um mesmo dia do mês passado,
três estímulos que poderiam passar quase despercebidos captaram e retiveram
minha atenção.
O primeiro foi uma longa
reportagem no Wall Street Journal —relatada na Folha dois dias depois—
sobre a história de um soldado russo que se rendeu para um drone.
Além do
texto, o jornal traz o vídeo completo, em que se vê o desespero do homem que
procura escapar das pequenas bombas despejadas pelo drone, que já haviam matado
vários de seus companheiros, cujos cadáveres jazem no chão da inútil trincheira
pela qual ele se movimenta erraticamente, com evidentes sinais de exaustão após
horas de agonia.
O WSJ nos informa que
seu nome é Ruslan Anitin, tem 30 anos, esposa e uma filha de três anos.
Era um
pacato comerciante de bebidas na cidade de Idritsa, de apenas 5.000 habitantes,
próxima à fronteira com a Letônia, quando foi convocado compulsoriamente para
o esforço de guerra.
A segunda notícia foi o anúncio
da morte de Cormac McCarthy, amplamente
reconhecido como um dos grandes escritores contemporâneos da língua inglesa.
Seus livros, em geral ambientados no oeste americano e
caracterizados pela exposição crua e direta da violência entre os homens, foram
frequentemente adaptados para o cinema.
O mais conhecido desses, ganhador de
quatro Oscars, inclusive o de melhor filme, em 2007, é "Onde os Fracos não Têm Vez",
dirigido pelos irmãos Coen.
Foi esse filme que me veio à
mente, quando soube da sua morte. Nele, um homem (Llewelyn Moss) encontra
acidentalmente uma grande quantia, originalmente destinada ao pagamento de uma
transação entre traficantes de drogas que terminara em morticínio.
Incapaz de
resistir à tentação, ele se apropria do dinheiro sem dar maior atenção aos
inúmeros cadáveres que compõem a cena.
A partir daí inicia-se uma
caçada implacável, que não concede espaço para respiro do começo ao fim do
filme.
Os dois personagens principais da perseguição, além de Moss, são um
incansável matador de aluguel com ares de psicopata e um xerife já entrado em
anos, que parece ser a única pessoa capaz, ou mesmo interessada, de refletir
sobre a violência que rodeia a todos.
O terceiro estímulo foi uma
referência ao ensaio "O Mito de Sísifo", de Albert Camus, feita por um amigo em uma troca
de mensagens sobre inteligência artificial.
Tanto ele como eu
travamos contato com o texto no colegial e eu o reli incontáveis vezes desde
então.
Camus abre o ensaio afirmando
que o suicídio é o único real problema filosófico, na medida em que contém a
questão fundamental: "A vida vale a pena ser vivida?". E conclui o
texto com o mito de Sísifo.
Sísifo fora condenado pelos
deuses a empurrar indefinidamente um grande rochedo redondo montanha acima, de
onde a pedra inevitavelmente rolava de volta ao sopé.
Os deuses haviam julgado
não haver pior castigo do que o trabalho inútil, incessante e desesperançado.
Este é um aspecto central do texto: Sísifo era perfeitamente consciente de sua
situação e não nutria nenhuma ilusão de que o rochedo um dia se estabilizasse
no alto da montanha, ou de que ele deixasse de ser obrigado a empurrá-lo.
Foi coincidência que essas três
histórias me surgissem, ou ressurgissem, no mesmo dia. Em todas elas o horror
está presente.
O horror da guerra tão concretamente representado pelo soldado
completamente só, exausto e desesperado, com passo vacilante, voltando seu
olhar, ora para os corpos dos companheiros caídos no seu caminho, ora para o
céu onde paira o drone assassino, diante do qual, em um gesto extremo, cruza as
mãos em frente ao peito e implora por misericórdia.
O horror do homem que se sabe perseguido por um maníaco
infatigável, que pode emboscá-lo a qualquer momento, assim como o horror do
xerife, que se sente desaparelhado, desadaptado a um mundo cada vez mais
violento.
Finalmente o horror da punição
eterna sem nenhuma esperança de redenção. A condenação a uma vida sem qualquer
perspectiva.
No dia seguinte, uma mensagem
do meu irmão Eduardo, a quem eu havia enviado a reportagem do WSJ enfatizando
seus aspectos chocantes, lançou uma luz diferente sobre a história.
Ele
escreveu: "...ao mesmo tempo, acho que o que nos atrai nessa história é o
fato de que, através da câmara do drone e utilizando a inteligência humana,
duas pessoas, dois inimigos, conseguiram se comunicar e se compreender de
maneira improvisada através de gestos e chegaram com sucesso a uma boa solução,
salvando assim uma vida humana".
Essa visão me levou a procurar
contrapontos semelhantes nos outros dois casos.
Se o russo encontrou
compreensão e empatia por parte de um soldado inimigo, que o conduziu à
rendição, Sísifo não teria nenhuma chance de encontrá-las junto aos deuses.
Mas
Camus introduz o elemento humano de outra forma em sua tragédia. Ele conclui o
texto afirmando que é necessário sermos capazes de imaginar Sísifo feliz, pois
"a própria luta para ascender ao cume é suficiente para preencher o
coração de um homem".
Na história de Cormac McCarthy,
não há perdão nem conversão do assassino; Llewelyn Moss não escapa ao seu
destino trágico.
O aspecto humano e, a meu ver, redentor da trama surge na
última cena, quando o xerife, agora aposentado, relata um sonho à sua mulher:
"[meu pai e eu] estávamos
de volta aos velhos tempos e cavalgávamos à noite pelas montanhas... estava
frio e havia neve... e ele passou por mim e seguiu em frente.
Não disse nada,
apenas passou montado em seu cavalo, enrolado em um cobertor e com a cabeça
baixa; quando passou, vi que carregava o fogo em um chifre à moda dos antigos e
eu podia ver a luz brilhando dentro do chifre...
No meu sonho, eu soube que ele
iria à frente e faria uma fogueira em algum lugar em meio à escuridão e ao frio
e tive certeza de que ele estaria lá quando eu chegasse" (tradução livre).
O ser humano é capaz de
provocar situações de intenso horror, mas há algo em nós que pode também criar
o seu avesso. Nossa esperança está sempre em encontrar e alimentar essa chama;
seja nos outros, seja em nós mesmos.
CANDIDO BRACHER - administrador de Empresas formado pela FGV, foi executivo do
setor financeiro por 40 anos.