Negacionismo climático 2.0 aposta no desespero
Furacões Helene e
Milton inundaram esfera pública com lendas infalseáveis de conspiração
Em 13 dias, dois furacões varreram a Flórida e
outros estados dos EUA. Pelo menos duas centenas de mortos, mais de US$ 100
bilhões de prejuízos –e, como na guerra, com as primeiras vítimas pereceu
também a verdade.
A tempestade
tropical Milton evoluiu para furacão força
máxima (5) em 48 horas.
Desencadeou 150 tornados. Ao tocar o litoral, na
quarta-feira (9), já havia caído para força 3, mas ainda levantou ressaca de
três metros.
A devastação de 26 de setembro pelo furacão
anterior, Helene,
fez mais de 230 vítimas.
As mortes do Milton ainda serão contadas. Para
especialistas, é patente que o nível de mortandade e destruição da dupla
pancada é resultado direto do aquecimento global.
As águas do Atlântico estão quentes como nunca e
ciclones se alimentam da temperatura do mar para crescer. Nesta temporada de
furacões, é como se tivessem aumentado a chama do fogão e a panela atmosférica
entrou em ebulição.
É a explicação científica, mas não está entre as
que produzem mais "engajamento" nas redes. Milhões de
norte-americanos veem e replicam posts sobre a fábula de que o governo
democrata manipula o clima para
castigar estados republicanos.
Esse paroxismo de empulhação pede para ser batizado como
negacionismo 2.0.
Para sustentar a ideologia que inocenta combustíveis fósseis
pela crise climática, mandam-se às favas os escrúpulos de consciência e
ciência.
O negacionismo 1.0 era mais civilizado. Pagava-se a
pesquisadores com vocação para ideólogos pelo serviço de semear dúvidas sobre o
aquecimento global ou a responsabilidade humana por ele –como haviam feito com
o elo entre tabagismo e câncer.
Naomi Oreskes e Erik Conway documentaram essa
propaganda travestida de ciência no livro "Merchants of Doubt"
(2010), ainda sem tradução no Brasil.
A produção deliberada de ignorância deu
origem a um campo acadêmico
novo, a agnotologia.
Bom seria se ainda estivéssemos nessa enganação
primitiva. Algo como o negacionismo 1.3 da conversa sobre financiar a transição
energética com renda do petróleo.
Ou, então, a proposta de estourar a meta de
Paris (1,5ºC) e depois enfiar a pasta de dente de volta no tubo (captura e
estocagem de carbono).
Mais que denunciar fabuladores como a deputada
trumpista Marjorie Taylor Greene a falar de manipulação do clima, ou deplorar a
falta de noção científica de quem vai na sua onda, falta entender por que cada
vez mais gente consome essas patacoadas.
O primeiro passo foi entender a oferta
de inverdades, mas não iremos até a esquina sem elucidar a demanda por elas.
O rebaixamento do limiar de verossimilhança e
credibilidade deve ter a ver com o grau de desamparo das pessoas comuns diante
do sofrimento que a mudança do clima e o aceleracionismo capitalista lhes
impõem.
Só forças ocultas portentosas poderiam explicar tamanho descaso com a
tragédia mais que anunciada.
Antes se dizia que o pior cego é o que não quer
ver; agora o pior cego é o que quer ver, qualquer coisa, mesmo a mais
inacreditável, desde que combine com as falsidades de pastores, (ex)coaches,
demagogos ou influenciadores a quem se agarram. Não mais viés de confirmação,
mas compulsão de confirmação.
MARCELO
LEITE |
jornalista de ciência e ambiente, autor de
“Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)