Fronteiras ou pontes, o que queremos?
'Almagesto', texto
grego de Ptolomeu, estava fora do alcance da maioria dos acadêmicos da época;
até Gerardo de Cremona traduzi-la para o latim
Em
algum momento antes de completar seus 30 anos, o monge italiano Gerardo de
Cremona (1114-1187) viaja para Toledo, na Espanha, onde vai realizar seu
trabalho mais importante como tradutor e copista de obras científicas, e virá a
falecer.
Toledo,
a velha capital do reino visigótico na Península Ibérica, foi um renomado
centro de conhecimento sob o domínio do califado islâmico de Al Andalus.
Transformada em capital do reino cristão de Leão e Castela após a conquista
pelo rei Afonso 6, em 1085, permanece um polo de atração para estudiosos de
toda a Europa.
Um
milênio antes, longe dali, o matemático e astrônomo grego Ptolomeu (século 2º)
escreveu a obra sobre astronomia que consolidou o modelo geocêntrico do
Universo, em que a Terra ocupa o centro.
Intitulado originalmente "Tratado
matemático", o livro acabaria sendo conhecido no Ocidente como
"Almagesto", já veremos por quê.
Famoso
em toda a Europa, o texto original grego de Ptolomeu estava, no entanto, fora
do alcance da maioria dos acadêmicos da época, que não dominavam a língua.
Gerardo quer torná-lo acessível a todos, por meio da tradução para o latim.
É
sobretudo por isso que se muda para Toledo, onde espera encontrar essa e outras
obras antigas na versão em árabe. Por quê?
Duzentos
anos antes, a milhares de quilômetros dali, Abu Nasr al-Farabi (870-950) viaja
para ocidente ao longo do que seria depois chamado as Rotas da Seda.
Não
sabemos direito de onde vem, mas sabemos que o seu destino é Bagdá, a capital
do poderoso califado Abássida, e que é animado pelo mesmo objetivo que Gerardo:
a busca pelo conhecimento.
Inaugurada
em 762 pelo califa al-Mansur (714-775), fundador da dinastia reinante, Bagdá é
uma cidade jovem, mas já constitui o principal centro de pensamento do mundo
islâmico.
Sob o califa Harun al-Rashid (766–809), imortalizado em "As mil
e uma noites", ela vai alcançar uma reputação quase mítica, irradiando o
brilho da civilização islâmica em seu apogeu.
Al-Farabi contribui para essa irradiação, traduzindo
energicamente para o árabe o tesouro de obras de pensadores tanto do Ocidente
quanto do Oriente reunidas em Bagdá.
O sucesso pode ser avaliado pelo fato de o
seu sobrenome ter se tornado sinônimo de livro na Europa durante séculos. Na
nossa língua, permanece nos vocábulos "alfarrabista" e
"alfarrábio", que é como os sebos são chamados em Portugal.
É
a sua tradução do tratado de Ptolomeu para o árabe que Gerardo de Cremona vai
encontrar em Toledo e verter para o latim.
Na época de al-Farabi, o título em
grego já evoluiu para "O maior dos tratados". Ele transcreve o grego
"megiste" (o maior) para o árabe "al-magisti", que Gerardo
latiniza para "almagestum", e é assim que o livro adquire seu título
atual.
O modelo geocêntrico nele contido será o padrão científico do Ocidente
até o século 16, quando dará lugar ao sistema heliocêntrico de Nicolau Copérnico
(1473-1543).
É
uma história de três pessoas cuja paixão pelo conhecimento cruzou tempos e
espaços, unindo línguas e culturas diversas.
Ela parece ainda mais relevante
quando, como hoje, o poder se empenha em enfatizar as fronteiras que nos
separam, em detrimento das pontes que nos unem.
MARCELO
VIANA -
diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e
Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.