Cuidado ao debater com
negacionistas
Ao combater
teorias conspiratórias, devemos usar o método científico para explicar as
regras do jogo
A Terra não é plana. Ela é esférica, e ponto final.
Eu poderia parar meu texto aqui, mas ele ficaria um
pouco curto.
E sobretudo acredito que ele não serviria a nenhum propósito: não
mudaria a posição de ninguém, nem de quem acredita na Terra plana.
Por isso mesmo, é fundamental nesses casos entender
as regras do jogo: como cientistas desenvolvem hipóteses e teorias, como
confirmamos predições com experimentos, e como o consenso é desenvolvido.
É aí
que entra o método científico.
O método científico possui um longo histórico,
desde o empirismo aristotélico na Grécia antiga, passando por uma discussão
mais aprofundada do empirista inglês Roger Bacon, e chegando a pensadores
modernos como o húngaro Imre Lakatos, filósofo da matemática.
Teorias
epistemológicas à parte, no entanto, o ponto comum dos pensadores é o confronto
da teoria com os experimentos para a construção do conhecimento.
Um dos exemplos mais didáticos que conheço é o do
dragão na garagem, criado pelo astrônomo Carl Sagan e baseado em grande parte
nos trabalhos do filósofo Karl Popper.
Se um vizinho convida você a conhecer um
dragão que ele tem na garagem, mas que segundo ele é invisível, intangível e
não apresenta qualquer traço detectável de existência, ora, para todos os
efeitos, o dragão não existe.
O princípio fundamental aqui seria o da
falseabilidade, ou seja, a capacidade de refutar uma hipótese. Do ponto de
vista epistemológico, não importa se o dragão é real ou não, se não podemos
imaginar um experimento que prove o contrário.
Considere um exemplo mais prático —e histórico— da
relatividade geral. No começo do século 20, Albert Einstein elaborou um modelo
teórico que considerava um espaço-tempo curvo, uma mudança radical de um espaço
euclidiano postulado por Isaac Newton, por exemplo.
A relatividade geral explicava com sucesso
fenômenos até então incompreensíveis, como desvios na órbita do planeta
Mercúrio. No entanto, é fácil elaborar explicações a posteriori para fenômenos
físicos —ou seja, ajustar sua hipótese às observações.
O grande desafio para
uma teoria científica é prever fenômenos e desenhar experimentos para
testá-los.
O grande teste para a relatividade foi o eclipse
solar total de 1919, observado em Sobral, no Ceará, e na ilha do Príncipe, na
costa ocidental do continente africano.
A hipótese de Einstein previa que o
campo gravitacional do Sol curvaria o espaço ao seu redor e, com seu brilho
ocultado pela Lua durante o eclipse, seríamos capazes de detectar uma variação
na posição aparente de estrelas distantes alinhadas com nosso astro-rei.
O resultado? Sucesso. Nenhuma outra teoria era
capaz de explicar o fenômeno, e a relatividade geral foi confirmada.
Essa é a grande diferença para as discussões
pseudocientíficas acerca de ideias como a Terra plana. Confirmar ou refutar
essa "teoria" é muito simples.
Usemos novamente o exemplo dos eclipses solares.
Nosso conhecimento sobre a geometria de corpos celestes e suas órbitas nos
permite prever quando e onde os eclipses solares acontecerão, com precisão de
metros e minutos.
Um estrondoso sucesso de nossa capacidade de estimar o
comportamento futuro da natureza, ao contrário do que defensores da Terra plana
são capazes de fazer.
Para acreditar na esfericidade do planeta, bastaria estar
no lugar certo, na hora certa, e olhar para cima.
Entretanto esses mesmos defensores não jogam com as
mesmas regras. Em vez de utilizar o método científico para promover suas
ideias, eles se valem de explicações a posteriori, ajustando e reajustando um
modelo às observações quando necessário, criando contradições cada vez mais
profundas. E quando nada mais dá certo, recorrem à falácia do argumento ad
hominem, ou seja, atacando os cientistas em vez de discutir suas ideias.
Notem como esse é o terreno fértil para a
propagação de teorias conspiratórias e fake news.
Valendo-se de preconceitos
ideológicos e princípios sociais e psicológicos, os terraplanistas se
aproveitam de argumentos emocionais, não racionais, para difundir suas ideias.
Por tudo isso, devemos ter cuidado ao
"debater" ciência com negacionistas. Lembrem-se, eles não jogam com
as mesmas regras.
No lugar do método científico, que oferece condições
equitativas para todos os interlocutores, eles se valem de subterfúgios para
chamar a atenção de um público-alvo que, por motivos diversos, estaria mais
suscetível ao discurso.
Pelo contrário, ao aceitarmos participar desse
debate, como se fosse uma contraposição válida, estaríamos legitimando a
polêmica como se fossem dois pontos igualmente relevantes. Não são.
Devemos, isso sim, por meio de uma comunicação
científica efetiva e uma educação de base consistentes, passar à sociedade a
importância do método científico.
Mostrar que a ciência é construída sobre
bases epistemológicas sólidas, que ela não se deve simplesmente à genialidade
individual desse ou daquele cientista.
A ciência está ancorada no trabalho
coletivo e nas evidências experimentais que nos permitem construir as teorias
de forma consistente.
THIAGO GONÇALVES - astrônomo, diretor do Observatório do Valongo da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e divulgador de ciência.