Nem sempre fazer exames de rotina traz benefícios para a saúde


Dosagens para diagnosticar carências e ou excessos nutricionais em pessoas saudáveis não têm amparo na boa ciência.

 

Quando enchia o vigésimo tubinho de sangue, o enfermeiro do laboratório me olhou desolado e disse: “dona Cláudia, vamos ter que procurar uma outra veia. Essa já era. E ainda está faltando bastante. Só por curiosidade: qual foi o médico que pediu esses exames todos?”. “Nutrólogo”, respondi. “Já desconfiava”, disse ele, com um sorrisinho no canto da boca.

Um mês antes, eu tinha passado um perrengue, uma adenomiose que havia me deixado anêmica em razão de uma intensa hemorragia. Estava me sentindo muito cansada, sem ânimo e sofrendo com os efeitos do tratamento hormonal, entre eles um repentino ganho de peso.

Ao ouvir o canto da sereia de uma amiga que tinha gostado muito do tal nutrólogo, resolvi tentar. De cara, já fui falando: “doutor, eu não faço dietas restritivas, não acredito em medicina ortomolecular e desconfio dos vínculos de nutrólogos com as farmácias de manipulação. O que o senhor me sugere?”

Ele levou na esportiva. Fez a anamnese direitinho, mediu pressão, auscultou o coração e o pulmão, sugeriu que eu fizesse ali mesmo a tal bioimpedância, aquele troço que te faz sentir uma obesa mórbida. Perder cinco quilos de gordura e ganhar massa magra era a minha lição de casa.



Pessoa coleta amostra de sangue  

 

Após olhar meus exames recentes, o médico disse que prescreveria algumas vitaminas, minerais e reposição venosa de ferro por conta da anemia. E insistiu que era necessário fazer mais alguns exames laboratoriais.

Ao pegar o pedido de exames, reagi de imediato. A lista passava de cem: “Pra que isso tudo? Magnésio? Selênio? Potássio? Zinco? Cobre? Alumínio? Mercúrio? Chumbo?” Ele me olhou como se fosse um ET. E eu, para encurtar a conversa, disse: “Ok, se eu já vim até aqui, vou até o fim”.

Após três veias puncionadas e um arrependimento atroz, estava eu dias depois em casa preparando um ceviche, quando me ligam do laboratório. Era um toxicologista.

“Dona Cláudia, um exame seu, o de mercúrio, está alterado. A taxa está elevada, o dobro do padrão de referência. A senhora, por acaso, come muito peixe?” Eu olhei para o ceviche, ele olhou para mim… "Sim, de quatro a cinco vezes por semana. E o que eu faço com esse mercúrio alterado, doutor?”

“Olha, não tem muito o que fazer. Sugiro que evite peixes como o atum e o cação, que são os mais acima na cadeia alimentar e que costumam ter mais mercúrio”.

Imediatamente, passei a pesquisar tudo sobre taxas elevadas de mercúrio. Só encontrei na boa literatura médica referências a tratamentos para intoxicações agudas. Liguei para o nutrólogo e ele disse: “fique tranquila, tem um tratamento ótimo, a quelação, que resolve isso rapidinho. Faço aqui mesmo no consultório.”

Ao desligar o telefone, fui pesquisar de novo. A tal quelação, que consiste em injetar certas substâncias na corrente sanguínea para “capturar” o mercúrio e eliminá-lo pela urina, só tem indicação para casos de intoxicação aguda. E ainda assim é arriscada. Dosagens inadequadas de ácidos injetados podem aumentar a toxicidade e até ser fatal.

Segundo a literatura científica, não há evidência de benefícios e de segurança do tratamento em casos de intoxicação crônica ou mesmo em situações como a minha, mais “light”. Consultei outros três toxicologistas e todos contraindicaram veementemente qualquer tratamento no meu caso. E me recomendaram esquecer aquilo tudo. E foi o que eu fiz.

Avisei ao nutrólogo que não faria o tratamento e relatei todo o meu desconforto com a situação e minha descrença com o excesso de exames e com a terapia ortomolecular que ele havia proposto. Ele disse que respeitava a minha opinião, mas que havia estudos que amparavam a sua conduta. Ponto final nessa curta relação médico-paciente.

Voltei a me lembrar dessa história ao ver um post recente na rede social do médico de família Rodrigo Bandeira Lima. Com uma foto de uma pilha de exames, ele escreveu: “quando sua paciente nem precisa dizer que passou por um nutrólogo dos mais picaretas”. Pedi para o Rodrigo escrever um texto sobre isso.

Segue a contribuição dele para a coluna:

A realização de "exames de rotina" como forma de cuidar da própria saúde é uma prática bastante popular. Uma parte considerável dos agendamentos de consultas médicas pode ser atribuída ao desejo de fazer um "check-up" para saber se está tudo bem. A iniciativa não parte apenas dos pacientes: profissionais médicos adotam a medida com razoável frequência. 

O que pouco se divulga, no entanto, é que a identificação de alterações em exames laboratoriais ou de imagem antes do surgimento de sintomas raramente está associada a benefícios para a saúde dos pacientes.

Os médicos chamam de "rastreamento" o ato de procurar por doenças em sua fase pré-clínica, ou seja, em um estágio onde os pacientes não identificam sintomas mas os médicos podem, através de testes clínicos, apontar alterações passíveis de intervenção.

O Ministério da Saúde considera sete critérios para a implantação de ações de rastreamento: 1) a doença em questão deve ser um problema importante de saúde pública; 2) a história da doença deve ser bem conhecida; 3) deve existir o estágio pré-clínico, ou seja, sem sintomas; 4) o tratamento da doença ao ser identificada no rastreamento deve trazer mais benefícios do que o tratamento na ocasião do surgimento dos sintomas; 5) os exames que identificam a doença devem ser acessíveis, aceitáveis e confiáveis; 6) o custo do rastreamento deve ser compatível com o orçamento do sistema de saúde; e 7) o rastreamento deve ser contínuo e sistemático.

Infelizmente, muitos profissionais de saúde (não apenas médicos, que fique bem claro) parecem focar nos critérios mais fáceis de atingir: a simples disponibilidade e aceitabilidade de vários exames de sangue por um custo acessível aos seus pacientes faz com que esses profissionais adotem a prática sistemática de solicitá-los para boa parte das pessoas que entram em seus consultórios, mesmo que os benefícios desse tipo de diagnóstico não estejam bem documentados pela ciência.

 Como médico de família e comunidade me deparo com muitos pacientes que me trazem páginas e mais páginas de exames solicitados por outros profissionais, e tenho percebido que uma área específica tem sido responsável por boa parte destas solicitações: a nutrologia. Dosagens de diversas vitaminas e minerais têm sido solicitadas por esses profissionais com o objetivo de orientar a elaboração de dietas personalizadas, baseadas nas carências ou excessos dessas substâncias na alimentação.

Se a dosagem dessas substâncias em pessoas saudáveis com o objetivo de diagnosticar "carências" ou "excessos" nutricionais não se baseia em evidências científicas de qualidade, pior é a situação da oferta dessas substâncias na forma de suplementos alimentares.

Pessoas saudáveis via de regra não se beneficiam de suplementos alimentares, e a diminuição do manganês ou do selênio, por exemplo, identificadas num exame laboratorial "de rotina", não podem ser chamadas de doenças.

Claro que não estamos aqui condenando a suplementação em pessoas que precisam dela. Pacientes em uso crônico de corticoide podem se beneficiar da suplementação de cálcio, por exemplo. Pessoas com pouca exposição solar podem se beneficiar do uso de vitamina D. A suplementação com ácido fólico é importante para mulheres que planejam engravidar, assim como nos primeiros meses de gestação.

Existem vários exemplos, mas ainda assim representam um percentual pequeno da população, e certamente não são estas pessoas que consistem na maior parte das que têm procurado nutrólogos e ou nutricionistas para fazer avaliações laboratoriais.

Enquanto faltar bom senso aos profissionais que propagam soluções mirabolantes para problemas que raramente são problemas de verdade, é preciso informar bem para proteger os pacientes deste tipo de intervenção.

Cláudia Collucci - jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.

Fonte: coluna jornal FSP

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