O ícone do ônibus queimado


A canícula ensandece, esquenta a cabeça e as convicções. Os sans-culotte que em julho de 1789 foram à rua tomar a Bastilha não repararam nisso. Muito menos os chefes revolucionários que mudaram o espectro político mundial. A revolução russa ocorreu em pleno inverno de 1917, porém muitas batalhas de rua pelos direitos civis nos EUA e ondas de protestos na Inglaterra e na França travaram-se em pleno verão. A metáfora da primavera como sinônimo de abertura foi criada na Europa em 1848, repetida na Argélia em abril de 1961, com o golpe dos generais aposentados contra De Gaulle, e consagrou-se em Paris e Praga no inesquecível ano de 1968. Hoje, na era da multidisciplínas e da compulsão fenomenológica talvez existam suficientes informações para relacionar calor e rebeldia, tempo quente e radicalismo.

Em nossa iconografia libertária há muitas espadas desembainhadas, uniformes abotoados, e poucos grilhões arrebentados. A estes símbolos acrescentaram-se nos últimos tempos os ônibus incendiados. Os números são impressionantes: nos 31 dias deste ano em quatro estados brasileiros 66 ônibus foram incendiados ou depredados.

Protesto ou pretexto, motim ou manifestação, provocação desestabilizadora ou ação política desesperada, guerrilha das milícias ou da alta delinquência? Irresponsabilidade de lideranças sindicais que priorizam o interesse corporativo sem atentar para o interesse público? Ativismo digital ou mero mimetismo?

Talvez tudo isso e algo mais. Acuadas, as autoridades investigam pistas, acadêmicos especulam sobre teorias conspiratórias e opinionistas desafiados pela folha em branco, soltam a imaginação e o verbo. Vale-tudo válido, a perplexidade é legítima. Diante do desconhecido e do inopinado, o caminho mais seguro pode ser a tentativa e experimentação. Sherlock Holmes, novamente ressuscitado, jamais desprezou suposições, por mais absurdas que parecessem.

Scripts manjados

A situação é grave, urgente, perturbadora. Uma perigosa conjunção de circunstâncias tanto domésticas como externas, mediatas ou imediatas, próximas ou remotas, em ambientes com sensação térmica de 40ºC, convertem a imagem do ônibus incendiado num convite a paroxismos.

Em junho passado, pouco antes das nossas ruas se agitarem, a Turquia levantou-se contra um governo aparentemente popular empurrada por um protesto contra a especulação imobiliária em Istambul. A imensa Ucrânia tem mais de mil anos de fragmentações e subjugações, já foi Lituânia, Polônia, Rússia, Império Austro-Húngaro, União Soviética e 3º Reich nazista. País independente há apenas 23 anos, agora se aferra ao sonho jamais sonhado: quer ser Europa.

Talvez consiga: sem queimar ônibus, dá provas de uma formidável impaciência diante de scripts batidos e manjados.

Alberto Dines – jornalista, escritor, dirigiu e lançou diversas revistas e jornais no Brasil e em Portugal, foi editor –chefe do Jornal do Brasil, criou o site Observatório da Imprensa, é pesquisador sênior do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp.

Reproduzido do El País Brasil, 31/1/2014; intertítulo do OI

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