O álcool fazia de mim um perigo para a sociedade


O álcool fazia de mim um perigo para a sociedade

É difícil me perdoar por ter dirigido alcoolizada, e é doloroso pensar que muita coisa poderia ter acontecido.

"Não se mexa que eu já chamei ajuda. Você está sangrando muito." Ouvi isso mas não consegui enxergar o rosto de quem falava. 

O airbag do carro impedia qualquer movimento da minha cabeça. Eu estava imóvel dentro do carro que se equilibrava em uma árvore. Senti a boca cheia de pedra e apaguei. 

Algum tempo depois estava deitada olhando para aquelas luzes insuportavelmente brancas de hospital.

Naquela noite eu tinha entregado meu trabalho de conclusão de curso da faculdade. Sentia um misto de tristeza e euforia —péssima combinação para a minha doença

Paulo, meu melhor amigo na faculdade, estava sentado comigo no bar. Ele sempre bebia muito, mas parava (hoje sei que é um abusador do álcool, não um doente.)

Ficamos um tempo conversando e bebendo, mas alguma coisa estava muito errada. Eu não me sentia à vontade ali, naquele dia o álcool não tinha um efeito calmante, muito pelo contrário: estava me deixando mais nervosa e aflita.

 "Paulinho, vamos embora, não quero mais ficar aqui." Fui pegar meu carro.

Naquela época, não era tão frequente blitz policial (não que isso fosse um empecilho para mim...). 

Dirigia rumo à minha casa quando Paulo (que muitas vezes dormia lá) me disse: "Me leva pra casa que hoje quero dormir bem". 

Por um milagre não discuti e fiz o que ele queria. Talvez porque estivesse cansada-com-sono-triste-eufórica-aflita-angustiada. E bêbada.

Depois de deixá-lo, fui, ou tentei ir, pra casa. Como fazia aquele percurso praticamente todos os dias, seria fácil chegar ao destino. 

Quando entrei no bairro onde morava, faltando pouco mais de cinco minutos pra estacionar, já me sentia segura. A sensação de quase casa me fez acender um cigarro e aumentar um pouco o som. 

Cantando, me distraí e num movimento displicente deixei o cigarro aceso cair no chão do passageiro. Imediatamente fui tentar reaver o cigarro com o carro em movimento mesmo. Bastaram poucos segundos para eu pegar a bituca e levar a maior porrada que já senti. 

Não larguei o volante e o carro foi parar numa árvore, sem nenhum freio.

Deu perda total. O airbag abriu e eu me fodi. Paulinho provavelmente não teria sobrevivido se estivesse comigo, porque o único espaço interno sem nenhuma ferragem era aquele em que eu estava graças ao airbag. 

As pedras que senti na boca eram três dentes destroçados. Em minutos eu mudei o destino final daquela noite. Em vez de deitar na minha cama, fui parar num leito de hospital.

Hoje, passados quinze anos, experimento uma sensação de estranheza ao lembrar daquele dia. Parece que estou contando a história de outra pessoa. 

Os resquícios desse acidente se resumem a alguns probleminhas na mandíbula e na arcada dentária. Poderia ter sido pior, poderia ter havido consequências piores. É uma merda lembrar disso e escrever sobre isso porque não tem nada a ver com tudo que sou hoje. 

Estar em recuperação é mergulhar em um intensivão de autoconhecimento e ir clareando o que é a vida, do que eu realmente gosto e quem eu sou.

É difícil me perdoar por algumas vezes ter dirigido alcoolizada, é difícil e doloroso pensar que muita coisa poderia ter acontecido. 

Porque acontece muita coisa. Seis meses depois desse acidente eu perdi o carro e a carteira de motorista. Outro acidente. E, mesmo que eu não tivesse perdido a carteira, as dívidas não me permitiriam comprar outro carro. 

Hoje, quando vejo pessoas que beberam e vão dirigir, fico mal. Nunca consegui impedir nenhum bêbado de fazer alguma coisa.

Tive que passar por condenações pessoais e sociais para que finalmente começasse a tentar uma nova vida. Sou uma alcoólatra em recuperação

Não importa se estou há quatro anos sem beber: importa que cada dia sóbria me leva para mais perto de uma vida mais condizente comigo. 

Hoje eu sou responsável por mim e por quem me pede ajuda. Não fico no meu mundo solitário de dor e arrependimentos.

É fácil? Nem um pouco, mas já foi mais difícil e tudo indica que se eu evitar o primeiro gole nas próximas 24h ficarei ainda mais calma e viverei mais de acordo com meus princípios. 

Se me culpo? Muito, mas fui pagando o preço e perdendo pessoas e itens. Nesse caso, o carro e a vida motorizada.

 Para sempre? Não. Só por hoje. E amanhã, quando eu acordar, vai ser que dia? Hoje. E hoje eu não vou beber e não vou perder para a insanidade a que minha doença me leva.

Tudo volta no seu tempo. A carta de motorista ainda não está comigo. Quem sabe um dia, outra vez de carro, eu possa dar carona para muitos Paulinhos que não são doentes e sim abusadores. 

Para Alices que teimam em não aceitar que perderam para o álcool. 

O álcool é um problema de saúde pública, uma arma fatal para pessoas como eu. Uma arma para mim e para todos que estão ao meu redor. 

Pela qualidade de vida que levo hoje, não troco uma mesa de bar por nenhum dia chato no parque, se é que você me entende.

ALICE S. – jornal FSP

Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br