Criados em Marte


Criamos alguns bordões em relação às nossas crianças. Elas são mais inteligentes do que as que viveram algumas décadas atrás, nasceram com um chip inovador no cérebro, têm mais personalidade e sabem, desde muito cedo, o que querem e do que gostam.


Todas essas frases você deve ouvir e, eventualmente, dizer com regularidade, não é? Eu não passo uma semana sem ouvir algumas dessas e outras bem criativas, como: "Pelo que eu observo do comportamento de meu filho, ele será um empreendedor (o garoto tem três anos incompletos!).


Pois é: andamos espantados, orgulhosos, perplexos, maravilhados, encantados e seduzidos com muitos comportamentos das crianças. Acreditamos piamente que elas são tudo isso o que dizemos delas e que, realmente, são diferentes das crianças de outros tempos.


Mas, logo depois dessas primeiras reações, assim que elas crescem um pouco, passamos rapidamente da admiração à reclamação. Ora porque as crianças não comem bem, só querem porcarias e se recusam a experimentar novos alimentos, ora porque não têm limites e se comportam muito mal, ora porque dão trabalho demais na escola e em casa, fazem birras e manhas, só se dedicam às coisas das quais gostam, são agitadas em demasia, não conseguem focar a atenção nos trabalhos, entre outras coisas.


E não é incomum que os mesmos comportamentos das crianças suscitem, dependendo do momento e do contexto em que ocorram, reações contraditórias por parte dos adultos que com elas convivem. Uma criança pode dar uma resposta impertinente à mãe, que, por estar calma, acha graça e fica orgulhosa da inteligência da filha. O mesmo comportamento, horas depois, faz a mãe reagir com braveza e impaciência, que levam à reclamação à qual me referi.


Talvez seja necessário cotejar comportamentos de crianças e de adultos, não é? Assim, quem sabe possamos pensar melhor sobre o quanto os comportamentos delas são influenciados pelos nossos?


Vamos começar com a história dos limites, que sempre surge. Será que as crianças são educadas em Marte --porque é para lá que nós não vamos-- e, por isso, achamos que elas não têm limites quando voltam? Se elas não têm limites, seja lá o que signifique isso, é porque nós não os apresentamos, correto? Se elas fazem o que bem entendem, é porque sabem que podem.


E por que será que elas só querem comer salgadinhos, pizzas, lanches, biscoitos, doces e tomar refrigerantes? Porque não vemos a hora de elas poderem mastigar para presenteá-las com essas porcarias gostosas, não é? E a agitação delas, e a dificuldade de colar a bunda na cadeira para focar a atenção em uma coisa trabalhosa? Ora, desde que elas nascem, lotamos a vida delas de estímulos visuais e sonoros, damos uma infinidade de brinquedos que elas nem dão conta de explorar, e tudo isso sem falar na profusão de elogios por nenhum esforço da parte delas. E por que tanta manha e birra? Simples: porque aprenderam conosco que essas são estratégias que funcionam.


Precisamos reconhecer que temos sido adultos pouco inteligentes no trato com as crianças. Sempre damos mais do mesmo, não sabemos bem o que queremos delas, dizemos "não" apenas enquanto nossa pouca paciência suporta e logo cedemos, e achamos incríveis quaisquer bobagens que elas façam, desde que nos deixem sossegados.


Vamos repensar nossos bordões?

Rosely Sayão – psicóloga, consultora em educação, é colunista do jornal Folha de São Paulo, autora entre outros do livro “família: modos de usar”.

Fonte: jornal FSP
Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br