É possível estarmos vivendo em uma simulação, como 'Matrix'?


Empresários do Vale do Silício consideram bancar pesquisa para descobrir se somos reais ou virtuais

Estamos vivendo numa simulação? A ideia é popular. Em inglês, “a glitch in the matrix” (“defeito na matriz”) já faz parte do dicionário urbano, fazendo referência a defeitos na putativa simulação que habitamos.

O termo se aplica quando eventos antes considerados extremamente improváveis tornam-se realidade. Vêm à mente a vitória de Trump nas eleições, a virada dos Patriots no último quarto do Super Bowl e a confusão no Oscar de 2017 (quando o filme errado foi anunciado como grande vencedor), mas vou evitar a polêmica de eventos mais recentes.

A parte da “matriz” vem do filme "Matrix" (1999), que logo completará 20 anos. No filme, humanos perderam a guerra para a inteligência artificial e foram aprisionados em suas próprias mentes.


Cena do filme "Matrix Reloaded" (2003) -

Enquanto seus corpos são sustentados em cápsulas e usados como baterias para os computadores, suas mentes coabitam um sonho hiper-real, de que vivem em uma sociedade normal do final do século 20. Aquela sociedade estava sendo “simulada”: o sonho coletivo era construído por computadores e alimentado diretamente aos cérebros humanos.

Hoje em dia, a moda progrediu de "Matrix" à “hipótese da simulação”, que é referência de intelectuais da esfera pública como o empreendedor Elon Musk e o astrônomo Neil deGrasse Tyson. A hipótese vai um passo além do filme e se livra dos corpos físicos para hospedar a consciência humana: toda consciência seria também simulada, fazendo parte da realidade virtual construída por computadores de uma civilização avançada.  

Ao passarmos de “glitch in the matrix” a essa hipótese, progredimos de uma brincadeira sobre eventos improváveis à séria preocupação. Musk e Tyson, entre muitos outros, creem haver grandes chances de realmente vivermos nessa simulação total, e alguns empreendedores do Vale do Silício consideram bancar pesquisa para descobrir se somos reais ou virtuais. Musk já disse que “há uma chance em um bilhão de que a nossa realidade não seja simulada”.


Musk tem fama de ser trabalhador implacável /

O raciocínio que levou muita gente a levar a ideia a sério parte de uma suposição sobre a rápida evolução de nossa tecnologia. Até ontem, estávamos jogando Tetris em uma tela esverdeada. Hoje, criamos mundos virtuais socialmente complexos e visualmente convincentes, explorados não só por nossos avatares humanos mas também por personagens artificiais.

Em termos abstratos, esses rápidos avanços são encapsulados pela "lei deMoore" —a observação de que nosso poder de computação dobra a cada dois anos.

Um dia, segue a lógica, nossa tecnologia será suficiente para criar uma simulação hiper-real de uma sociedade inteira, em que nenhum "cidadão" percebe seu próprio status imaterial; um mundo virtual onde inteligências artificiais angustiadas se preocupam a respeito de estarem sendo simuladas.

Quanto maior a quantidade de sociedades neste nível tecnológico, maior a possibilidade de criarem mundos virtuais perfeitos, e portanto maior a chance de não pertencermos à "realidade-base”.

Mas não sejamos tão rápidos em nos convertermos a este culto. Primeiro, os crentes na hipótese da simulação parecem não imaginar que há mais em nossa realidade do que nosso vão cotidiano.

Hoje, os graus de liberdade dentro de um mundo virtual são bastante limitados: lá é possível visitar museus em Paris ou até participar de batalhas medievais, mas não é possível dissecar o corpo dos seus oponentes, sequenciar sua tira de DNA e depois correr para observar ondas gravitacionais vindas da colisão de buracos negros a milhões de anos-luz.

Mas se realmente só fazemos parte de uma simulação, ela tem de nos permitir explorar todo o ambiente ao nosso alcance. Isso requer um poder de computação colossal. Os programas que nos simulam têm de incluir a estrutura atômica e subatômica de cada planeta, todos os neurônios e células de cada habitante.

"E daí?", pergunta o convertido, "a 'lei de Moore' não nos garantiria esse poder num futuro distante?".

Não. É aí que a intuição falha. Mas a física ajuda.

Diferentemente das leis de Newton, a "lei de Moore" não é uma lei da física. Ela é só um padrão que viemos observando; seria um erro atribuir a ela tamanho poder de previsão. Por outro lado, a computação em si é vinculada a princípios físicos, portanto passível de análise mais concreta.

Tudo aquilo que processa informação —todos os bits de memória e qualquer processador— é composto por elementos materiais, sujeitos às leis da física. Como diz o físico Seth Lloyd, do MIT, “pedras, bombas atômicas e galáxias não rodam Linux, mas [mesmo assim] elas registram e processam informação”.

Segue que o processamento de informação em si está sujeito às limitações físicas de seu substrato material. Dois exemplos destas limitações são a velocidade da luz e o princípio da incerteza de Heisenberg na mecânica quântica (que impõe limites na relação entre a energia e o tempo requeridos para cada processamento).

Usando esses limites fundamentais, Lloyd, em seu artigo “The computational capacity of the Universe” (a capacidade computacional do Universo, de 2001), estimou o tamanho mínimo de um computador com o poder de simular o Universo em todo seu grau de detalhe. A resposta: algo da ordem de tamanho do próprio Universo. Sem compressão de informação, há pouca compressão de tamanho.

É importante ressaltar que esta análise não se refere a uma tecnologia específica, mas às próprias limitações impostas pelas leis físicas como as conhecemos hoje.

Isso significa que nossos mestres simuladores teriam que manipular um computador do tamanho aproximado do próprio Universo que estivessem simulando. Seria como simular um jogo de sinuca, mas, em vez de usar um laptop, usar uma mesa de sinuca, bolas de sinuca, tacos de madeira e jogadores humanos. Em que sentido ainda estamos falando de uma simulação?

Esses argumentos não impossibilitam a hipótese da simulação, mas minam a intuição que a tornou popular. Para salvar sua plausibilidade, seria necessário assumir que nossos criadores operam sob outras leis da física; leis que permitiriam uma simulação mais econômica de nosso mundo.

Mas, neste salto rumo ao mar do desconhecido, ficamos paralisados pela vertigem; diante da infinitude de mundos logicamente possíveis não há onde apoiarmos qualquer previsão sobre nada. O melhor a fazer é ficar em terra firme e aceitar a hipótese da simulação como o que ela é: assim como "Matrix", uma boa ficção científica.

Henrique Gomes - físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

Fonte: artigo jornal FSP

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